domingo, 3 de junho de 2012

O Tédio e o Estranho

          Dentro de um apartamento, num prédio de tonalidade bege claro padrão, a ociosidade contemporânea parece se personificar nos pensamentos deslocados de um jovem estudante de nome Augusto Angústia. Era inverno, tempo nublado. Tempo perfeito para as mais variadas disposições.
          Tentava se concentrar naquele texto, mas não conseguia por mais de alguns segundos. Fora assim que sucedeu sua pretensão: olhava as letras, visualizava palavras e,... Sentia a perna coçar, esquecia-se daquelas palavras lidas e, agora, imaginava coisas aparentemente desconexas às tratadas naquele texto em particular.
          “Essa história de que o ser humano é um ser social é uma besteira, algo natural não deveria cansar tanto!”. “O que fazer, né?”. A seguir, fabulou uma cena em sua mente no qual ele mesmo estaria tocando violão e cantando igual ao Bob Dylan. Interrompeu aquela cena, percebendo de sua fuga da realidade, coçou os olhos com a mão direita e voltou-se a leitura. Leu um tanto, foi ao banheiro, lavou o rosto e, mais uma vez, tentou continuar com sua tarefa, já mais inquieto que da primeira pausa: “O que estou fazendo? Lendo sem querer ler, me obrigando a isso. Busco o que neste texto?”.
          Não demorou em ele entender que o que buscava naquelas palavras estava escondido à sua volta, cada frase fez sentido quando deixou aquele fluxo que antes o atormentava, aliviar sua frustração... Encontrou naquela “fuga” não uma distração à toa, mas uma poderosa reflexão de suas escolhas. Seus dilemas afiguravam-se ao redor dele nas mais variadas formas, cada decisão sua estava centrada neste jogo existencial, agora sua vida era coerentemente perturbada, em todos os momentos nosso amigo se via entre escolhas. Cada ato correspondia a uma possibilidade de saída do dilema por uma de suas vias, não havia neutralidade em suas escolhas. Não havia mais passado ou futuro em suas preocupações, estes não lhe preocupavam, estava suspenso no constante devir, queria ajustar-se ao passar das horas. E assim, imaginando como deveria ser seu retrato frente ao tempo, passou alguns minutos de seu dia, só divagando.
          Até que, desapercebeu-se do mistério de sua vida quando lhe propuseram outro mais interessante. Sem poder respirar profundamente, a única conclusão que nosso herói sem extravagâncias chegou foi, simplesmente, que há uma terrível descontinuidade na ruptura com a, como ele mesmo diria, “necessidade que nos é imposta pela própria vida”. Sem se distrair com aquelas propagandas que tocam a alma, Augusto enfim entendeu... que é melhor não tentar entender por que a vida ora nos impõe essa necessidade de nos recolhermos em nós mesmos (suspender os sentidos) e ora nos obriga a voltar-se para com o esperado de nós (obrigar os sentidos). Após esse amadurecimento, o um-pouco-mais-sábio Augusto voltou a notar a derradeira passagem dos segundos, dos minutos, dos dias em vão, tornou a se preocupar com sua maneira de lidar com as coisas.
          Não dependia de mais ninguém para sair e desbravar aquele mundo tão cheio de aventuras inspirava-se sempre quando pronunciava, num coro com sua expiração, tal palavra... “aventura...” “Ah, que dureza de se agrilhoar ao conforto enganoso!” É, para nosso querido amigo de sobrenome duvidoso nada é verdadeiro se a mente está lenta, sem rítmica, escondida e na defensiva diante do mundo.
          “Já passou mais horas”, Augusto constata, e muitas mais deslizaram para ele, pulavam em seu colo uma após a outra, sincronicamente ao movimento da programação televisiva, até que suas pálpebras finalmente cedem. Entra naquele estado semi-onírico, no qual a desorganização mental aparece um pouco antes do dormir de fato: É um balde de signos prontos para a farra. Aproveitam a ausência de uma autoridade para inventarem suas narrativas cheias de inquietude que reverberam mais tarde, na alvorada da consciência letárgica e tranquila. Só que, lamentavelmente, como as lágrimas de ternura enxugadas como a água suja que lavamos das mãos; os signos em seu estado natural de euforia (e no maravilhoso caos que far-se-ão duvidarmos de nossa vivência), são expurgados do corpo. Antes sereno, em sua não realização diária. Em sua inconsistência sensorial, fluidez. Porque não presenciar a própria imaginação, que é o sonho não sonhado ou forçosamente esquecido?
          Augusto vivenciou um momento como aquele numa tarde fria de Julho, no seu sofá desgastado e sujo. Acordou meia hora depois, e sentiu uma intensa onda de calor vindo de suas entranhas, relaxado, passa a refletir consigo mesmo:
          "Talvez chova", - por que antes de chover não havia desculpas.
          "Acho que eu vou beber um pouco daquilo", - não, isso não será suficiente!
          "Ah, como eu queria poder conversar com aquela moça bonita!" - Não seja tolo, ser avulso do mundo!
          "O que tem ali?" - Um mero reflexo de seu desespero, eis o que tem ali.
          "Hum, acho que um café, vou tomar um café." - Isso, talvez assim você se anime.
          "Ai, mas está frio e é longe, não sei, acho melhor ficar aqui mesmo" - Meu Deus, quanta negatividade!
          "Deixa para outro dia" - Vivendo pelo dia seguinte, a melhor maneira de desperdiçar a vida.
          "Ai já deve estar passando aquele programa!" - É um caso perdido mesmo, tanta coisa acontecendo no mundo. Pff, não sei por que diabos te colocaram no mundo se você tem medo dele!
          - Até a luz tênue refletida pelos seus olhos parece entristecer-se, tome jeito!
          Na sala ruidosa, pouca coisa se movimenta. Aqueles olhos angustiados de Augusto dançam com a luz que passa pelo infinito de cores naquela caixa de vidro e se aloja instantaneamente na imaginação e, tão logo mingua e se desfaz na escuridão da noite intermitente que é a mente sem retorno.
          Um breve movimento do dedo indicador transfigurou uma realidade, quando voltou a mirar o olhar para a tela, seus olhos sentiram um calor intenso que logo reverberou a fundo pelo seu corpo e por um segundo sentiu seu espírito mais próximo ao corpo. Era gracioso, profundo, eterno um segundo.
          Depois, tudo se apagou. Todas as luzes se esfriaram. A mente foi cindida novamente, corpo inanime e espírito deformado.
          Agora não mais dançam, são sombras buscando a própria sombra no vazio, não sabem onde procurar, tudo é inconstante e frio.
          Sublime desespero, energia que anima. Verteu-se no sangue a fúria, o desapego de sua prisão.
          No corpo inquieto paira um espírito com dores e pura ânsia o consome.             
          A fuga converteu-se em pura ação.
          Corre, xinga, tropeça na cadeira e cai. Humilha-se.
          Não anda como gente, se rasteja como uma barata moribunda.
          Quer escuridão perpétua, deflagra-se no canto mais escuro sua ternura.
          Ó atrofiado corpo humano, quão aguda é sua dor!
          Dopado singelamente pelo calor que consome ali seu ser orgânico, sente-se avulso das dores humanas.
          Ali terminaram... as vozes figurativas... as preocupações torpes.
          Foram densos, incansáveis.
          Goles.
          Diminuiram a cada pausa. Tempo precioso. Tempo de loucura, forjou no fogo as sombras solitárias. O corpo deformado de Augusto e o espírito inânime, avulsos e impuros. Do fogo, renasceu a Angústia da alma sem torpor.

Por Renato Bradbury

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